Fita de cetim
Viena, Aústria
A mulher seguia através das vielas de pedra, as construções imponentes cobertas por ouro. A cidade de Macchu Picchu resplandecia no auge da sua beleza, mas a moça não tinha tempo para avaliar a arquitetura, precisava encontrá-lo. Ouvia os passos secos ecoando, rápidos e curtos. Ao contornar uma esquina, foi de encontro com uma construção arredondada: O templo do Sol. Passou pelas enormes portas de madeira, solenes, guardando o recinto sagrado, e deparou-se com o pequeno garoto, cabelos pretos cortados retos, os olhos amendoados.
- É tempo de retornar. – Ele disse.
Odessa acordou sobressaltada, o suor deixando seu cabelo emplastrado ao pescoço. Não era a primeira vez que sonhava com aquele lugar, mas nunca se recordava. Agora as palavras do garoto martelavam em sua memória. Palavras em Quechua.
Callao - Peru
- Mas que formosura! – Odessa empinou o corpo ao ouvir os elogios vindos dos homens das docas. Ao virar o rosto, pronta para dar uma resposta atravessada, percebeu que as palavras não eram dirigidas a ela. Os olhos de todos os trabalhadores estavam voltados para o navio que acabara de chegar, transporte de Odessa e de sua preciosa carga. Não era à toa. O metal da embarcação era brilhante, mesmo sob as nuvens acinzentadas que cobriam o porto de Callao. Tinha uma cor bronze, contrastando com o tom dourado que contornava as milhares de janelinhas redondas na lateral. A fumaça saindo pelas chaminés se esgotava aos poucos, dando foco à beleza exótica metálica, incomum na América do Sul, em 1865.
A mulher, antes pronta para reclamar, sentiu-se um pouco traída. Estava acostumada a ser notada pela sua beleza e, por mais que reclamasse, fazia parte de sua natureza aparecer. Vestia uma calça de sarja bege, metade coberta pela longa bota preta que subia até seu joelho. Uma camisa branca de mangas longas e decote profundo surgia por dentro do cinto e era coberta, em parte, por um colete de linho contendo diversos bolsos, onde costumava guardar seus apetrechos para pesquisa, tesouras, pinças e pincéis. Trazia no pescoço um lenço rosa amarrado, sua marca pessoal, e óculos de proteção na cabeça. Os cabelos negros caiam em um rabo-de-cavalo alto e os olhos azuis faiscavam. Após o breve instante de orgulho ferido, voltou a atenção para a carga sendo retirada do barco pelas imensas máquinas a vapor.
- Cuidado, o conteúdo destas caixas é delicado e caríssimo, senhores. – Ela falava o Quechua com os trabalhadores peruanos quase sem sotaque. Nunca entendeu aquilo mas, desde sua juventude na Aústria, dominava a língua, nunca ensinada pelos seus pais. Nasceu com aquela capacidade e não sabia o porquê. Respirou fundo e sentiu-se completa por estar naquele país, finalmente. Sonhos estranhos a motivaram a atravessar o oceano para buscar uma cidade perdida. E só pode voltar a dormir tranquilamente quando entrou no navio para a viagem, como se fosse obrigada a seguir este rumo. Não se lembrava quando os primeiros sonhos com as ruínas peruanas chegaram, mas parecia que eles a acompanharam durante toda a vida, fragmentos de uma lembrança que nunca viveu.
Dezenas de caixas de madeira enormes foram descarregadas da enbarcação. A mulher coordenava a operação pessoalmente. Sua viagem dependia daquilo. A quantia de dinheiro investido naquela expedição fora exorbitante, mas se obtivesse sucesso, o retorno seria maior, fora o prestígio. Odessa adorava prestígio.
Depois de uma semana de trabalho, a montagem estava completa. Muitos dos trabalhadores locais não compreenderam o que aquela maravilha da engenharia representava até as caldeiras serem acesas e o vapor quente começar a ser jogado no interior dos balões ligados por cabos a enorme cabine. A “Estrela Polar”consistia em uma máquina voadora gigantesca, um desafio às leis da física, levada as alturas por enormes balões de ar quente e direcionadas por enormes pás e bobinas que forneciam o empuxo necessário para manter o percurso.
Os objetos pessoais de Odessa foram levados para dentro. Para uma mulher, ela era sucinta, com poucas roupas, mas com muitos livros e mapas.
- Você vai viajar nisso sozinha, senhora? – Um garotinho, que batia apenas no seu joelho, a cutucou. O olhar curioso esquadrinhava a mulher de cima a baixo. Uma voz alegre, estranhamente familiar.
- Eu vou sim. Você duvida? – Ela abaixou um pouco e olhou dentro dos olhos amendoados do moleque.
- Não, senhora, não duvido. É que é tão grande esse… esse… esse negócio. – A verdade era que Huyana nunca havia visto uma construção como aquela.
- Estrela Polar, esse é o nome. Vai voar até o céu. – Ela apontou para o alto.
- Eu posso ir junto, senhora?
- Infelizmente não pode, eu vou numa missão perigosa. Não é lugar para crianças, sinto muito. – Odessa passou a mão pelo cabelo macio e pesado e foi em direção ao dirigível. Ao olhar para trás, o garoto não estava mais lá.
Entrou na cabine gigante da nave. Uma grande sala central comportava uma mesa redonda, onde espalhou seus mapas e bússolas, iluminada por uma série de lâmpadas. A energia elétrica era fornecida por inúmeros cataventos posicionados estrategicamente para fora, durante o voo. Os homens estavam rindo quando ela fechou a porta, todos duvidavam que uma moça delicada poderia controlar um aparelho de tal magnitude. Isso porque não conheciam Estrela Polar. Aquela aeronave tinha, praticamente, vida própria e Odessa não duvidava que um dia ela sairia voando sozinha. Bastava ajustar as coordenadas de voo e inserir o mapa em uma enorme lingueta: o trajeto era traçado imediatamente e a viagem prosseguia sem o auxílio de um piloto. Isso seria fácil se ela tivesse coordenadas exatas, mas não tinha. Buscava uma cidade perdida, uma dúvida entre os pesquisadores. Precisa ter paciência comigo – Ela falou enquanto acariciava o painel de comando. Olhou novamente os mapas. Estava no porto de Callao e precisava rumar ao Sul, atravessas as cordilheiras dos Andes. Acreditava que encontraria seu destino lá, não muito longe de Cusco.
Traçou uma rota estimada e posicionou o mapa no compartimento. Começou a ouvir o som de múltiplas manivelas rodando, Estrela Polar pensava. Após alguns segundos, uma luz vermelha se acendeu e o som das caldeiras se fez mais forte. O gás quente foi impulsionado com mais força. Voava.
***
O movimento da aeronave era leve, como o oscilar tranquilo de uma rede de descanso. Odessa preparou uma comida e posicionou-se novamente frente aos mapas, quando ouviu:
- Estou com fome, senhora. – O mesmo menino do porto estava parado ao seu lado.
A mulher pulou da cadeira, assustada. – Garoto, o que você está fazendo aqui? – perguntou num sobressalto. Depois passou a gritar, nervosa: - Você está louco? – O garoto apenas abaixou a cabeça, envergonhado.
- Desculpe, senhora. Só queria lhe fazer companhia e … voar. – O brilho no olhar fez Odessa esquecer a raiva. Ela lembrou de si mesma na infância, também se esconderia por aquele motivo.
- Como é seu nome?
- Huayna, senhora.
- Bem, Huayna, você precisa se comportar, promete?
O garoto apenas acenou com a cabeça e estendeu a mão num sinal de acordo. Quando Odessa tocou o garoto no cumprimento, assustou-se. Com a face lívida recolheu o braço rapidamente.
- O que foi, senhora? Fiz algo errado?
- Não foi nada. – Sua voz era fraca.
Odessa se afastou, pensativa. Estranhou o toque do garoto por ser igual ao seu: uma pele completamente lisa, como se estivesse coberta com uma luva do mais fino cetim. Nunca conhecera alguém igual a ela, nunca imaginara reconhecer no garotinho um semelhante. Buscara a explicação para sua peculiaridade a vida toda, mas nenhum médico tinha uma justificativa para o fato. Diziam ser algo constitucional. Sua pele era daquele jeito e ponto, nunca vista antes. Até aquele momento.
***
Algumas horas haviam passado e a tranquilidade foi substituida por nuvens negras. As lâmpadas dentro do dirigível começaram a piscar freneticamente, tal a velocidade que as pás dos cataventos alcançaram. Huayna não saia de perto de Odessa, assustado com a escuridão externa. Vista de fora, Estrela Polar lembrava um pequeno barco sendo engolido por ondas revoltas, transmutadas em forma de uma tempestado assustadora. Trovões provocavam clarões intermitentes, um brilho ensurdecedor.
Odessa disfarçava, tentando não desesperar o menino, mas por dentro estava perdida. Aos trancos, tentava manter-se de pé na cabine de comando, com diversas luzinhas de origem desconhecida piscando. Pegou uma série de papeis, as supostas instruções de funcionamento da aeronave, apenas para perceber que devia ter estudado aquilo antes. Largou a papelada no chão e tentou enxergar algo através das nuvens, mas era praticamente impossível. A única alternativa seria tentar pousar.
Pensou em todas as lições recebidas – e ignoradas - na Igreja, durante a sua infância, e torceu para que existisse um Deus. Começou a baixar a Estrela Polar lentamente, lutando contra as trepidações. O veículo reclamava e o ranger das engrenagens lembrava um choro de sofrimento. As nuvens começaram a rarear, permitindo uma visão nem um pouco agradável. Passava por dentro da Cordilheira dos Andes. Fez um movimento brusco, para desviar das montanhas, lançando Huyana longe. Algumas pás foram arrancadas pelas rochas que passavam rentes a aeronave. Conseguiu passar o perigo iminente, mas perdeu o controle, sendo lançada a esmo no céu. Temeu que aquele fosse seu último instante de vida e, ao olhar para o lado, sofreu com o jeito medroso do garoto. Ele ainda tinha muito o que viver. Apertou todos os botões, chamou o menino para perto de si e o abraçou. Numa oração silenciosa, esperaram que Estrela Polar os salvasse.
Rodopiavam e caiam no céu, até que os botões passaram a brilhar num padrão distinto e os engasgos do motor mostraram um último esforço. A aeronave, milagrosamente, tornou-se mais estável, mas já viam o chão. Bateram com força e tudo se apagou.
***
Aos poucos, a sala de comando voltava ao foco. A cabeça de Odessa latejava e ela sentiu o cheiro metálico do sangue que secou em seu rosto. Estrela Polar estava parcialmente destruida, a beleza das lâmpadas do painel transformou-se num caos de cacos de vidro. Cuidadosamente, levantou-se, procurando em volta pelo garoto.
- Huayna, onde você está? Huayna? - Ia aumentando o tom de voz, até virar um grito angustiado. Onde estava o garoto? Revirou os escombros hesitante. A cada mobília afastada, temia encontrar o corpo de seu novo protegido, mas não o encontrou. Arrastou-se como pode para fora da aeronave, passando pela porta estenosada pelo impacto.
- Macchu Picchu. – Para surpresa da mulher, a aeronave havia caído na praça principal de uma ruína inca. O nome do lugar saiu espontaneamente de sua boca, um impulso incontrolável. Um arrepio percorreu sua coluna e ela teve certeza que conhecia aquele lugar. Uma energia subia por suas pernas, vinda das pedras que revestiam pedaços do chão. A Natureza ganhava em alguns pontos, a grama brotando entre as paredes parcialmente destruídas e lhamas pastando onde um dia andou uma nação. Por um acaso do destino, acabara caindo no objetivo da sua missão, a cidade inca perdida, exuberante, mesmo devastada pelo tempo. Entretanto, apenas uma coisa veia a sua memória: o seu último sonho. Mais uma vez entre as ruínas. Mais uma vez o procurando: Huayna.
Começou a correr, contornava as esquinas e percorria uma rota definida. Não sabia explicar como, mas conhecia o caminho, sabia para onde partir.
- Templo do Sol. – Estacou frente a uma construção arredondada, cravada sobre a pedra bruta. Mais uma vez as lembranças. Viu a enorme passagem e sabia que., um dia, enormes portas de madeira guardaram aquele lugar. Avançou, o som de seus passos espantou aves que repousavam naquele local. Ao entrar, o garoto estava de pé, voltado para a parede.
- Huayna! – Ela chamou. O menino virou-se, mas sua expressão havia mudado. O rosto doce e curioso substituído por um olhar duro.
- É tempo de retornar. – As palavras soaram como um eco do passado. Odessa andou na direção do garoto, que a evitou e saiu correndo do templo.
Sem pensar duas vezes, começou a seguí-lo. Via seus cabelos cortados retos oscilando no vento. Ouvia os passos secos ecoando, rápidos e curtos. Tudo parecia estranhamente conhecido. Juntos, os dois percorreram as ruas da cidade e iniciaram uma subida pelas pedras. A noite dificultava a perseguição, mas ela parecia saber para onde iam, guiando-se de maneira espontânea.
Chegaram, finalmente, a um grande bloco de pedra esculpido, completamente liso. – Intiwatana – Odessa sabia que local era aquele, mágico. O menino lançou um sorriso e afastou-se da pedra. A moça aproximou-se e viu surgir sob os raios prateados da lua, a imagem de uma mão, esculpida perfeitamente. – Mas o que é isso?
- É para você, Odessa. – Huayna apontou a marca.
Prendendo a respiração, a moça posicionou sua própria mão sobre a marca, com um encaixe perfeito. A rocha começou a sofrer um leve tremor e afastou-se para o lado, instantaneamente, revelando uma passagem secreta.
O garoto entrou e Odessa o seguiu. Uma escada cravada na pedra descia desembocando em um longo corredor. As paredes brilhavam, devido a escrituras numa língua familiar que emitiam um brilho prateado.
Uma luz brilhava no fim do corredor e tornava-se mais forte a cada passo. Huayna correu em direção a ela, como se voltasse finalmente para casa, sumindo em meio ao clarão. – Mas o que é isso? – Odessa não entendia mais nada. Entorpecida pelos acontecimentos, ainda tonta pela queda do dirigível, continuou. Até ver um perfil humano delineado na luz. Um lindo homem de cabelos negros caídos pelos ombros, olhos da mesma cor. A pele amendoada, completamente lisa, cobria os músculos definidos do corpo, escondido por uma saia ocre. O sorriso branco era sincero e convidativo.
- Seja muito bem-vinda, irmã. – A voz era grave e intensa. Falava quechua, a língua ancestral do povo andino.
- Como assim? Quem… Quem é você? – As lágrimas desciam em filetes grossos pelo rosto da jovem.
- Eu sou parte de um povo, o seu povo. Somos os habitantes de Macchu Picchu, os construtores desta cidade sagrada. Há mais de duzentos anos voltamos para nosso lar, conectados ao nosso passado por este portal. Os poucos de nós que se perderam durante a fuga, morreram. Foram obrigados a passar vidas e vidas em um corpo humano. Como você, minha irmã.
- Os .. sonhos… a língua. – Odessa não conseguia ordenar as palavras.
- Sim, suas lembranças, seu conhecimento do Quechua, tudo isto prova que você é uma de nós. É momento de você retornar. Venha. – O inca estendeu uma mão, com o olhar alegre. Depois de alguns instantes de hesitação, a moça cedeu ao toque, liso como o seu - uma pétala de flor, uma fita de cetim. A porta fechou-se sem barulho e o corredor voltou a ficar vazio. Odessa e o Inca partiram, para onde Huayna já os esperava.
Os destroços da Estrela Polar permaneceram solitários na praça. Uma prova silenciosa de que aquela expedição fantástica um dia aconteceu.