Frase da Semana

"A verdadeira perfeição do homem reside não no que o homem tem, mas no que o homem é."
Oscar Wilde

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

A escritora

Bom dia,

Conforme prometido, aqui vai um nos nossos novos espetáculos: A escritora, reservado para eu colocar alguns dos meus textos.
Espero que vocês gostem! Mas se alguém odiar, por favor me fale!



Vida felina

Por sorte, estava perto do braço do meu namorado, quando quase escorreguei, mais uma vez. Aquele chão de paralelepípedos tortos não ajudava no meu equilíbrio, fraco por natureza. O risco de tombos, entretanto, valia a pena. Adorava passear pelas ruas estreitas de Paranapiacaba, visitar aqueles trens antigos que aguçavam a minha imaginação. Fantasiava sobre mulheres em vestidos de festa e homens com chapéus de abas largas.
Meus amigos, por outro lado, não pareciam se divertir muito e imploravam por uma parada para almoço. Pegamos uma viela e seguimos para um restaurante aparentemente barato – talvez pela sua fachada suja, ou pelo terreno baldio com grama alta, ao lado. Após me recompor do quase tombo, uma criatura preta com menos de 20 centímetros saiu cambaleante do matagal, tombando nas minhas pernas. Como primeiro instinto, pensei em chutar a coisa torta na minha frente, mas o som que chegou ao meu ouvido impediu o movimento. Um miado agudo e desafinado - como se fosse possível desafinar miando.
Um gato feio, era isso que apareceu na minha frente. O pelo falho em diversos pontos e o miado estridente que parecia uma vitrola quebrada – aquele bicho devia ter algum defeito de fabricação, nunca ouvi algo miar tão errado. Pior, contrariando todas as leis, era um filhote de gato extremamente feio, apesar dos filhotes serem sempre fofos e bonitinhos – excetuando as aves, que nasciam monstruosas. Sem resistir aos meu instintos protetores, abaixei e peguei o desastre da natureza na mão. Senti suas costelas saltadas, de tão magro e, ao correr os dedos pela sua cauda, reparei que ela estava fraturada.
- É por isso que você mia tanto, né, feiosa? – Neste exame inicial, vi, também, que tratava-se uma fêmea.
Obviamente, meus amigos me abandonaram falando com a gata e continuaram no seu caminho para a comida. Meu namorado – não voluntariamente – foi muito mais gentil.
- Melissa, você precisa mesmo falar com esse bicho?
- Arthur, você não está vendo? Ela está com fome e sofrendo! Nós precisamos ajudá-la. Foi o destino que a fez cruzar comigo.
Nosso passeio de Paranapiacaba virou a peregrinação de São Francisco – o protetor dos animais. Fomos em uma padaria, angariar leite, em um supermercado, arranjar uma caixa e, no final do dia, a gatinha feia – já batizada de Turmalina – miava no meu colo, em direção a São Paulo.
Não vou dizer que a recepção em casa foi amigável. Meus pais não tinham vocação – nem bolso – para abrigo de animais, muito menos para os feiosos, mas os convenci. A estada de Turmalina seria temporária, até encontrarmos uma família que a abrigasse. Comprei uma caixinha de areia, uma série de vitaminas e uma ração especial indicada pela veterinária - aparentemente a pequena andava desnutrida - além de uma coleira rosa, que ficou péssima naquele corpinho magro de pelos arrepiados.
Acordava com as unhas da gata nas minhas costas ou com o miado repetitivo e agudo, fora o seu ronronar alto – alto é delicadeza, ultrapassava o limite da normalidade, alcançando o bizarro. Sempre reclamando, a gata atormentava o meu dia, constantemente necessitada de carinho. Cresceu pouco. Aparentemente, o sofrimento dos seu primeiros dias a condenou ao destino irremediável de ser uma gata horrorosa. Eu procurava um dono, mas ninguém queria a coitada. Os poucos que encontrei interessados eram cheios de defeitos, não poderiam dar o amor que Turmalina precisava. Sem escolha, a gata virou nossa. Já dormia na barriga do meu pai e perseguia o cadarço do sapato do Arthur. Minha mãe vivia com ela no colo e eu, mesmo negando, adorava ouvir seus passinhos me perseguindo pela casa.
Até o dia em que não ouvi. Quando não vi a Turmalina correndo para o meu quarto na hora de comer, percebi que havia algo de errado. Revirei as gavetas, procurei em todos os armários, embaixo das camas e atrás do aparelho de DVD. Ela não estava em nenhum dos seus esconderijos. A noite já estava alta e uma garoa fina e gelada – do jeito que ela odiava – caia. Chamei seu nome, sacudi seus brinquedos, mas nada. Ela devia ter fugido. Coloquei meu chinelo e, de pijama, sai pela rua chamando a minha pequena. Com uma lanterna entrei até no terreno da vizinha, coberto por árvores e grama, cheio de morcegos. Todos os esforços foram em vão, a minha gata não estava interessada em aparecer.
Entrei em casa e me sentei na beira da porta, atenta para qualquer barulho. Minha cabeça estava povoada por pensamentos loucos: gatos esmagados por carros, pessoas maldosas que envenenam os bichanos ou aquelas criancinhas malignas que amarram coisas na cauda dos animais ou os torturam. Não controlei as lágrimas insistentes, aquela coisinha desajeitada havia me conquistado.
Depois de horas de espera, decidi largar o posto e dormir um pouco, mas, ao me levantar, ouvi o miado inconfundível da minha gata. Abri a porta e vi a Turmalina entrando, com a maior paz do mundo, como se voltasse de um passeio agradável. Eu a agarrei com toda força, a dúvida entre abraça-lá ou dar os petelecos merecidos. Claro que fiquei com a primeira opção. Dormi com ela no meu travesseiro, feliz com o seu ronronar estranho.
Decidida a impedir as escapadas, instalei telas nas janelas, mantinha as portas sempre fechadas e a gata era sempre vigiada. Mesmo na prisão de segurança máxima que elaboramos, Turmalina encontrava brechas – ainda desconhecidas – e escapava.
Algumas fugas duravam horas, outras, muito mais. Sempre que começava a perder a esperança, ouvia o miado desafinado, único, anunciando o retorno do meu monstrinho.
Percebi uma coisa. Turmalina era dona do seu próprio destino. Um dia, fugiria e não voltaria mais, não por morrer ou por se perder, mas porque decidiria assim. Da mesma maneira que ela me encontrou, quando era apenas um filhotinho desengonçado, encontraria outras coisas na vida e seguiria se próprio caminho. Ninguém, jamais, controlaria sua vida felina. Nenhuma tela, porta ou janela podia impedí-la. Eu percebi que a amava plenamente e, por amor, deveria estar pronta para deixá-la partir.



Nenhum comentário:

Postar um comentário