Frase da Semana

"A verdadeira perfeição do homem reside não no que o homem tem, mas no que o homem é."
Oscar Wilde

domingo, 27 de março de 2011

A escritora

Rapunzel

“A beleza é uma contradição velada”.
Jean-Paul Sartre
Era uma vez, em um reino distante, um casal jovem e feliz. A vida deles era simples: moravam em um casebre de madeira, plantavam legumes no quintal de terra e criavam algumas vaquinhas. Eram vizinhos de uma senhora muito feia, criadora de ovelhas, apelidada de bruxa pelas crianças da vizinhança, mas que sempre agia gentilmente com eles. Não tinham muitas ambições, acostumaram-se com a pobreza, apenas ansiavam por uma coisa: um filho, uma criança correndo pela casa, deixando as pegadas pequenas na terra do jardim.
 Tentaram a gravidez inúmeras vezes, na lua cheia, na lua crescente, de dia, de noite, mas as regras da mulher se mantinham presentes, mês após mês. Começaram a entrar em desespero, imaginando que nunca realizariam aquele sonho. Como última medida, separaram uma pequena quantia de dinheiro, guardada com muito custo, e resolveram recorrer a uma velha curandeira da vila, a qual vivia isolada em uma cabana no bosque.
Numa tarde, seguiram para a casa da mulher. Cruzaram pelas árvores velhas e retorcidas, com os galhos se agitando sob as lufadas do vento frio. A cabana se erguia no meio de uma clareira, o telhado quebrado com uma pequena chaminé cuspindo fumaça negra. Ao se aproximarem da porta, ouviram um pedido para entrarem, mesmo antes de baterem. Trocaram um olhar assustado, mas enfrentaram seus medos e avançaram.
Por dentro, o cheiro de mofo era inebriante e ratos comiam restos de comida sobre a mesa. A curandeira preparava uma bebida no fogão e virou-se com duas xícaras, como se soubesse antecipadamente da vinda do casal. Era difícil estimar sua idade: não parecia jovem, mas também não aparentava ser velha. Sua pele era morena pelo sol, mas os olhos se coloriam de um azul tão profundo que chegava a ser incômodo, com algumas rugas em seu contorno. Seu nariz era pequeno e empinado e seu rosto era fino. Seu cabelo negro e longo ondulava e caia sobre o seu busto, seus lábios grossos estavam pintados de vermelho sangue. Trajava uma blusa justa, amarrada por fitas na frente, com um decote tão profundo que seus seios pareciam pular para fora. Uma saia de veludo vinho descia até o chão e revelava pontas gastas e sujas.xq
- Esperava por vocês, meus queridos. – A voz sedutora assustou o casal.
- Nós..Nós pre...precisamos da sua ajuda. – O homem gaguejava ao falar com a mulher, constrangido pela voluptuosidade de seus gestos e amendrontado pela aura assustadora que ela emitia.
- Eu sei disso. Sentem-se, por favor, e bebam o chá.
Sem escolha, obedeceram a curandeira, mas evitaram o chá, que exalava um cheiro forte e desagradável.
- Vocês querem um filho e eu sei como vocês podem conseguir. Mas o preço é alto. – Ela mexia o próprio chá com uma colher de madeira enquanto encarava os dois aterrorizados.
- Nós lhe damos todas as nossas economias. Por favor, aceite, é tudo que temos. – O homem arrastou a bolsinha de couro que tilintava com o movimento de algumas moedas.
A mulher explodiu em risos. – Não é desse preço que eu falo, eu aceito as suas moedas, mas existem outras maneiras de pagar.
O homem titubeou, mas a sua esposa interferiu respondendo. – Nós aceitamos qualquer coisa.
Os olhos da curandeira brilharam. – Voltem amanhã.
No dia seguinte, o casal voltou ao casebre. A chaminé exalava um cheiro forte e almiscarado, com uma fumaça escura que subia em ondas e se perdia entre os galhos das árvores. Os poucos móveis estavam recostados na parede e no chão um círculo traçado no chão envolto por velas pretas e vermelhas.
- Deite-se no chão, dentro do círculo. – A curandeira indicou o local.
A moça obedeceu, tremendo. Um ritual sinistro foi iniciado, um cântico de palavras desconhecidas, mas poderosas foi entoado e um torpor dominou o corpo do casal. Mal ouviram quando uma pomba foi morta e o sangue, colhido dentro de uma taça foi oferecido para ambos beberem. Quando perceberam, estavam de pé, próximos a porta, despedindo-se da mulher e indo embora para casa.
Naquela noite, banhados em um sexo agressivo, houve a concepção do filho tão esperado.
A gravidez, desde o seu início foi sofrida. Dores abdominais fortes castigavam a moça e enjoos matinais tornaram-se rotineiros. Entretanto, havia algo mais estranho: uma vontade insaciável por comidas bizarras. Ansiava por ovos de aves silvestres, carne crua, fígado de boi, olhos de cabra. O marido se exauria em esforços para realizar todos os pedidos, com medo de que alguma doença ocorresse à esposa ou ao bebê.
Em uma noite, a moça despertou úmida pelo suor e ávida de desejo. Havia sonhado em comer um coração de cordeiro. Onde conseguiria um cordeiro no meio da madrugada? A mulher contorcia-se de dor, precisava comer, ansiava pelo coração como se sua vida dependesse daquilo. Angustiado, o homem encontrou apenas uma alternativa: entraria no terreno da vizinha, mataria um cordeiro e arrancaria o seu coração. Pulou a cerca de madeira que separava os terrenos e caminhou, sorrateiramente, até o local onde os animais dormiam. Avistou um pequeno cordeirinho branco, dormindo profundamente, meio isolado do grupo. Seria aquele. Colocou o animal debaixo do braço, segurando firmemente seu focinho fechado e preparou-se para fugir. Ao se virar, deparou-se com a vizinha, com uma vela na mão.
- O que você faz na minha casa? E com o meu cordeiro? – A velha senhora falou, a voz rouca pela idade.
- Desculpe, senhora Gotel, estou desesperado! – O homem se jogou no chão, transbordando em lágrimas. – Não sei mais o que faço, minha mulher está com desejos da gravidez .
- Ela quer carne de cordeiro? Eu tenho alguma salgada dentro de casa, eu lhe dou.
- Não. Ela quer o coração de um cordeiro.
Os olhos da senhora faiscaram. – Eu não permitirei que você mate o meu cordeiro para isso. Vá embora.
- Por favor, senhora, me ajude. Eu não sei mais o que fazer. Ela está perto do parto, deve ser sua última vontade. – O homem segurava com uma mão o cordeiro e com a outra a saia da velha.
Gotel refletiu durante alguns instantes antes de se pronunciar. – Eu darei o cordeiro sob uma condição.
- Fale o que é. Eu farei qualquer coisa.
- Você deve me dar a criança assim que ela completar um ano. Eu a criarei.
- Não, eu não posso dar o meu filho, nós esperamos tanto por ele! .Por favor, peça outra coisa.
- Não adianta, esta é a minha última oferta e a minha única condição. Para ter o cordeiro deve prometer me dar a criança.
Nenhum argumento foi suficiente. Derrotado, o homem levou o cordeiro, mesmo sabendo como o preço seria alto. Naquele momento, teve certeza de que a velha realmente era uma bruxa, como todas as crianças falavam. Que criatura cruel arrancaria o filho tão esperado de um casal?
Matou o filhotinho e arrancou o coração, a esposa já o esperava na porta. Quis comer a carne crua, enquanto estava quente, o sangue escuro escorrendo pelo canto da sua boca. No dia seguinte, a velha já não morava naquela casa, levando consigo todos os animais.
Depois de uma semana o bebê nasceu. Uma linda criança, os olhos azuis claros, o cabelo loiro como o sol, as bochechas coradas e as pernas redondas. O pai não teve coragem de contar sobre a promessa feita à bruxa. Esperava que a velha esquecesse, morresse ou desistisse da ideia. Não podia trazer tristeza para aquele momento tão feliz, quando estavam com a sua filha tão linda, dormindo em seus braços. Chamariam a menina de Rapunzel.
O bebê crescia rapidamente, sua beleza era tamanha que os vizinhos pediam para vê-lo, abraçá-lo e beijá-lo. Traziam presentes caros para a menina e diziam nunca ter visto uma criança tão encantadora. A mãe desdobrava-se em cuidados, encantada com o prazer da maternidade, o pai, entretanto, mantinha-se pensativo e afastado, atormentado pelo segredo que trazia no coração. Inventava desculpas para o seu comportamento e tentava enganar-se pensando que a bruxa não viria atrás de Rapunzel, mas uma angústia insistente em seu peito dizia que ele estava errado.
As estações passaram e o aniversário de um ano da pequena Rapunzel chegou.  O dia foi de alegria para a mãe e loucura para o pai. Quando a noite chegou, o homem começou a criar fortes esperanças que manteria sua filha, até ouvir algumas batidas na porta.
- Já vou. – A mulher, inocente, corre na direção da porta, esperando mais algum visitante com presentes para sua filha.
- Olá, minha querida, quanto tempo. – A velha Gotel esperava na porta, o mesmo rosto enrugado, o nariz com verrugas peludas, o corpo redondo se apoiando sobre pernas finas e peludas, que apareciam brevemente sob a saia de lã.
- Olá, senhora Gotel, entre. É aniversário da minha filha, Rapunzel.
O marido já estava parado ao lado da porta, amedrontado pela possibilidade de perder sua filha.
- Muito obrigada, querida. – A bruxa entrou e sentou-se em uma das cadeiras. – Vim buscar o que me pertence.
- Não, por favor, não! – O homem ajoelhou-se ao pé da senhora, em prantos. – Não leve nossa filha, ela é nossa felicidade.
- Como assim? Levar nossa filha? Do que você está falando, homem? – A moça segurava a pequena Rapunzel no colo.
- Lembra-se do cordeiro que eu dei para seu marido? Para você comer o coração? Eu dei sob uma condição: sua filha seria minha quando ela completasse um ano de idade.
Nem todas as lágrimas e gritos do casal impediram que a velha levasse o bebê. Gotel tinha uma força nas palavras e no olhar impossível de desafiar. Uma vez que a promessa era verdadeira, foram forçados a cumpri-la. Aquela noite foi marcada pela tristeza, viram sua filha partir nos braços de uma bruxa, condenada a um destino desconhecido, separados para sempre.
A bruxa e a menina foram morar em um lugar distante, um recanto isolado no meio de um bosque, vivendo em uma pequena choupana. Rapunzel, aos poucos, esqueceu dos pais e considerava a velha como uma mãe. Gotel não resistiu aos encantos da garota e a criava com carinho, cercada de atenção. A menina crescia em beleza e formosura, gestos delicados e voz doce como de um pássaro.
Aos dez anos, Rapunzel já parecia uma mulher. O corpo esbelto, de formas atraentes, o rosto fino coroado pelos cabelos loiros, nunca cortados, que desciam até o chão. Sua pele alva em contraste com os lábios vermelhos e os olhos brilhavam num azul intenso. Sua voz se assemelhava ao cântico dos anjos, doce e clara.
Gotel percebeu que a criança havia se transformado em mulher e logo apareceriam homens com presentes carregados de segundas intenções. Decidida a impedir isso, construiu uma torre muito alta sem portas, num canto isolado do bosque e trancou Rapunzel lá, lugar onde a garota permaneceria confinada para sempre. Receberia apenas a visita da velha, que subiria através dos seus longos cabelos trançados.
Muito tempo passou desta maneira. Rapunzel permanecia presa, cantando tristemente cercada pelas árvores e animais daquele bosque isolado, tentando espantar sua solidão. A velha Gotel era sua única companhia, trazia comida todos os dias e subia na alta torre pelas longas tranças da moça.
Um dia, um príncipe, ao atravesar o bosque, ouviu o canto da Rapunzel. Seduzido pela bela voz, seguiu o som da música e encontrou a torre alta, com sua pequena janelinha no topo. Viu, de longe, os cabelos dourados da garota e seus olhos azuis. Encantado, procurou uma porta, mas não encontrou. Decidiu esperar um pouco escondido para tentar descobrir o segredo daquela fortaleza. Depois de um tempo, viu a velha aproximar-se, gritando:
- Rapunzel, jogue suas tranças.
Como resposta ao chamado, longas tranças douradas foram lançadas e a senhora subiu ao topo da torre, utilizando-as como uma corda. Depois que Gotel saiu da torre e foi embora, o príncipe decidiu testar as palavras e gritou, disfarçando a voz:
- Rapunzel, jogue suas tranças.
Assim como havia presenciado, a trança dourada alcançou o chão e ele, sem hesitar, subiu ao topo da torre e entrou no pequeno cômodo que servia de prisão para a linda donzela.
- Quem é você? Você não é Gotel! – Rapunzel falou, assustada pela visita inesperada.
- Não, eu sou um príncipe. Estava.. Estava passando perto do bosque e ouvi seu belo canto. – Ele gaguejou enquanto falava. Rapunzel, com seu corpo feminino, hipnotizou os olhos do homem, despertando a volúpia que existia dentro dele. Só pensava que precisava possuí-la, a qualquer custo.
- Por favor, príncipe, ajude-me. Estou presa nesta torre, refém de uma terrível bruxa. – Lágrimas deixaram os olhos de Rapunzel mais azuis e seu rosto triste tornou-se ainda mais encantador.
-Claro, minha donzela, eu lhe ajudo. Como posso fazer isso?
- Traga-me, todo dia, um pedaço de seda, e irei tecer uma corda para escapar desta torre.
Conforme as ordens de Rapunzel, o príncipe voltava todo dia com um pedaço de seda, e, após a partida da bruxa, subia na torre, tentando possuí-la, mas ela negava, dizendo ser necessário o casamento. Tornava-se cada vez mais louco, tocado pela beleza e pelo desejo pela garota, aguardando com anseio a fuga, quando poderiam casar-se.
Quando a escada de corda ficou pronta, o príncipe pediu a Rapunzel para partirem o mais rápido possível, desejava tomá-la em seus braços como esposa, sem tardar.  Mas a garota tinha um último pedido:
- Por favor, espere até a noite e mate a terrível bruxa que me mantém prisioneira. Não poderei viver feliz sabendo que ela anda livre pelo mundo.
Se era aquilo que separava Rapunzel do seu leito nupcial, ele faria. Mataria quem fosse para tê-la em seus braços.
As corujas anunciaram o crepúsculo, pouco iluminado pela lua minguante tímida no céu. Gotel trazia uma cesta com o jantar para Rapunzel, com o coração pesado sem entender os motivos.
- Rapunzel, jogue suas tranças. – Apesar de dizer aquelas palavras todas as noites, a voz da velha saiu trêmula e suas mãos geladas escorregavam no cabelo sedoso da garota.
-Menina, trouxe o jantar para nós.
- Gotel, será nosso último jantar. – A moça puxou as tranças para perto de si e, sobre a face de tristeza de Gotel, olhou para o seu namorado, escondido.
Sob as ordens de Rapunzel, o príncipe enfiou a lâmina fria de sua espada no peito dela, o sangue quente e escuro da bruxa escorrendo pela mão que segurava a arma. A aparência da velha, tão asquerosa, enojou o rapaz, mas tranquilizou-o do crime que estava cometendo. Não podia ser errado matar uma bruxa tão horrorosa quanto aquela. Girou a espada no peito da velha mais uma vez, ouvindo o gemido que ela soltava, como o som de um animal sendo sacrificado.
Gotel tentou falar algumas palavras, mas sua voz estava empastada pelo sangue que chegava a sua boca, o gosto metálico dominando seu paladar. Sentiu um frio forte, sabia que a morte se aproximava. A tristeza por não ter cumprido sua missão trouxe algumas lágrimas aos seus olhos e novamente tentou falar com o seu algoz.
- Mate-a, meu querido, mate-a. – Adiantou-se Rapunzel.
Mais uma vez, o príncipe girou sua espada e Gotel não sentiu mais nada. Morreu junto de suas palavras.
O homem vitorioso partiu com Rapunzel para o Reino, pronto para declará-la sua esposa e amá-la eternamente.
O casamento foi celebrado no mesmo dia, com toda pompa. Todo o reino surprendeu-se com a beleza daquela princesa desconhecida, nunca foi vista uma mulher tão linda como aquela. Como presente, a princesa pediu que a noite de núpcias fosse passada no bosque, na casa de caça do rei. O príncipe mal podia esperar pela primeira noite junto de sua esposa, o momento para provar a beleza pura dela, perder-se em seus longos cabelos.
Rapunzel vestia uma bela camisola azul, seus olhos ardiam, os lábios brilhavam em vermelho e os cabelos loiros caiam soltos e ondulados. Sua beleza era hipnotizante e, ao deixar cair sua camisola, revelou um corpo perfeito. Aproximou-se do príncipe e o amou com luxúria, com a beleza de uma virgem, mas com a voluptuosidade de uma amante experiente. No ápice da paixão, a expressão de Rapunzel começou a se transformar. Seus olhos azuis, tornaram-se negros. Os cabelos ganharam vida própria, moviam-se como serpentes e envolveram o corpo do príncipe em um abraço. O homem, completamente envolvido com a luxúria, tomado de prazer, não percebia as mudanças em sua mulher, não via as unhas crescendo e transformando-se em garras longas e pontiagudas, ou a cauda que brotava, com uma ponta semelhante ao ferrão de um escorpião.
Só percebeu seu terrível engano, ao ver a boca de Rapunzel, aberta, com presas afiadas e compridas substituindo os dentes brancos e a língua bifurcada insinuando-se. Esta foi sua última visão, a mordida da morte, dada pelo demônio sedutor que revelou sua verdadeira imagem no leito nupcial. A súcubo consumiu sua primeira vítima, primeira de uma sequência de mortes. Gotel, a fada, tentou impedí-la, trancando-a no alto daquela torre, mas não havia maneira. Os humanos eram facilmente iludidos pela beleza. Devia ter matado-a na infância, mas enfraquecida pela bondade resolveu poupá-la, cometendo o seu maior erro. Não havia espaço no mundo para a bondade endurecida pela aparência feia, as pessoas não estavam preparadas para enxergar a verdadeira beleza. 

2 comentários:

  1. Adorei essa versão. Show de bola!!! Nunca fui com a cara da Rapunzel, rsrs. Estou brincando. Sério, adorei a recriação do conto. Parabéns!

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  2. como já disse no twitter, ela me inspirou para uma personagem vampira... um instinto selvagem, uma fome enorme uahuahuahuaa
    bom, maiores comentários sobre seu conto vc já sabe ;D

    parabéns por tudo!!!
    =***

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